Uma década com Francisco – Opinião – Pe. Nuno Filipe Fileno

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Texto de Opinião

Pe. Nuno Filipe Fileno

Uma década com Francisco

 

No próximo dia 13 de março completam-se dez anos da eleição do Papa Francisco.

Recordo bem como o mês anterior àquela data foi vivido pela Igreja, com uma insegurança inédita, fruto de um sentimento de orfandade espiritual, diante da renúncia de Bento XVI.
Note-se que o Pontificado de Bento XVI coincide com a expansão do mundo digital, designadamente o surgimento das redes sociais, que nos iam tornando cada vez mais conscientes do mundo globalizado que habitávamos. Consequentemente, figuras públicas, até então comunicadas apenas pela TV ou jornais, passavam a fazer parte do nosso quotidiano a partir de um clique. Para um jovem católico como eu, era fascinante poder acompanhar diariamente o que dizia o Papa, tornar-se seu “seguidor” à distância, compreender a sua visão do mundo e da missão da Igreja. Ao ingressar no Seminário em 2007, não posso negar a influência que a proximidade digital com o Papa teve nessa decisão. Ratzinger foi um teólogo fascinante, obviamente marcado pelo contexto da sua origem, da sua formação e das missões que desenvolveu na Igreja. Embora fosse apontado como pouco eficaz no modo como comunicava, o conteúdo da sua mensagem conseguia conciliar fé e razão, num diálogo abrangente e convincente, integrando diversos âmbitos do saber. Bento XVI foi sobretudo um mestre, a quem se seguia com confiança. No entanto os últimos anos do seu Pontificado, marcados por diversos escândalos internos, tornaram não só a sua missão pesada, como foram desgastando a sua imagem.

Embora a Igreja não seja o Papa nem o Papa a Igreja, é inegável que o cansaço de Bento XVI tornou-se também o cansaço da Igreja. Esperávamos todos que o tempo trouxesse serenidade mas não esperávamos que esta implicasse uma renúncia papal. Foi um ato de humildade e coragem, que a História certamente interpretará melhor com a distância temporal devida.

Chegámos a março de 2013, protagonistas de um momento histórico para a Igreja. Ao final do segundo dia de Conclave, ouve-se a partir da varanda da Basílica Vaticana aquele Habemus Papam que a todos surpreendeu: argentino, jesuíta, Francisco. Três características nunca antes presentes num Papa foram então apresentadas na primeira pessoa, por meio de um discurso inovador, ao qual se seguiu aquele arrepiante silêncio da multidão que rezava pelo novo Bispo de Roma. Este foi, aliás, o título que Francisco atribuiu à sua missão nessa mesma noite, recordando que o seu ministério universal é o de “presidir na caridade” às igrejas locais presentes em todo o mundo. Nesse detalhe de comunicação deixa intuir uma redefinição da missão papal, que mais tarde será integrada na expressão sinodalidade, tão característica destes dez anos, e que procura evitar um desfasamento entre hierarquia e fiéis, num subordinacionismo passivo dos últimos para com a primeira. Atendendo ao contexto da sua origem sul-americana e aos desafios colocados à sua missão episcopal na Argentina, entendemos a sua sensibilidade pastoral, ao privilegiar os pobres, os que não têm voz nem poder, de tão esmagados que estão por um mundo que gira em torno de uma economia que mata. O nome papal escolhido traduz a missão similar à do seu homónimo de Assis, que no início do século XIII, igualmente abriu um caminho novo, contrastante com a lógica do poder vigente.
Francisco, o Papa, ainda que incompreendido por tantos, interpela constantemente a uma mudança no rumo da Igreja. Quando escreve “a realidade é superior à ideia” no seu documento programático A alegria do Evangelho, quer alertar para o perigo de uma fé abstrata, cheia de ideias mas sem compromissos, mais próxima da ideologia que do Evangelho.

Esta parece ser a ideia-chave do seu Pontificado, que o faz primeirear (neologismo seu) nos gestos para credibilizar a mensagem, reconduzindo a Igreja à pedagogia do seu fundador – como não recordar a opção de celebrar a Eucaristia em cada quinta-feira santa com os reclusos, doentes ou idosos em vez de permanecer na sua catedral ou a criação de condições de apoio aos sem-abrigo que se encontram em torno ao Vaticano?

A verdade é que Francisco colocou no centro da Igreja e da Teologia não só os pobres e os últimos mas a complexidade do mundo onde vivemos que coloca tantas interrogações a quem crê. Anunciar a paz, olhando para o planeta como “casa-comum” onde todos somos irmãos parece reduzir-se a um discurso filantrópico desprovido de fé, mas é verdadeira atualização do Evangelho nos nossos dias – Jesus não fez outra coisa no seu tempo. A sua pregação comunicava acima de tudo o cumprimento de uma promessa, na vida concreta, e ainda que apontasse para um horizonte eterno, além da História, esse horizonte foi sempre apresentado como o cumprimento da própria História. Longe de considerar o Evangelho como instrumento meramente informativo, Francisco apresenta-o constantemente como um anúncio que requer acolhimento e ação, com vista a uma transformação, recordando assim a mensagem cristã como discurso, acima de tudo, performativo.

Depois de um ‘mestre’, Deus ofereceu-nos um ‘artesão’ para conduzir a Igreja. Ambos são necessários, ambos se complementam. Como bom artesão, Francisco sabe que a originalidade está no compromisso, no empenho pessoal. É por isso que a sua obra está longe de ser uma mera reprodução, é autêntica arte. Por isso estamos-lhe gratos.

Nuno Filipe Fileno

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