Publicado na edição de Outubro de 2022 da Revista FOZ
DESPORTO E A PAZ
A realização dos Jogos Olímpicos da Antiguidade estabelecia uma trégua entre as cidades que estavam em situação de guerra. Designou-se esse momento por TRÉGUA OLÍMPICA.
Durante esse período os atletas, artistas e suas famílias, bem como os peregrinos comuns, poderiam viajar em total segurança para participar ou assistir aos Jogos Olímpicos e voltar depois para os seus respetivos locais de origem.
O que talvez ajude a explicar que, ao desporto em geral e ao movimento olímpico em particular, tenham sido atribuídos objetivos pacificadores e uma espécie de bálsamo perante situações de conflito, se não mesmo de guerra.
A história do desporto tem exemplos contraditórios sobe esta espécie de efeito milagroso. Os Jogos Olímpicos foram interrompidos (edições de 1916 e 1940,1944) precisamente por conflitos à escala mundial. E o desporto foi também palco para a continuação de conflitos por outros meios, como o atestam os boicotes por parte de alguns países a edições dos Jogos Olímpicos ou o aproveitamento da sua realização para atentados a vidas humanas. Estes factos permitem-nos perceber que o desporto e o olimpismo não dispõem de qualquer efeito mágico que permita sobrepor-se ao que for a vontade e a capacidade humanas.
Pese embora este registo histórico, nem sempre brilhante, é óbvio que o desporto como linguagem universal tem em seu proveito alguma capacidade diplomática que quando bem utilizada tem permitido ajudar a pacificar as relações entre estados, países e nações em conflito.
O exemplo mais recente tem sido a aproximação das relações entre as Coreias fazendo acreditar que o desporto tem ainda à sua conta alguma capacidade política de aproximar partes em conflito. Mas em sentido oposto o conflito na Ucrânia levou a uma surpreendente volte-face no posicionamento do movimento olímpico internacional ao proibir de participação desportiva internacional a atletas russos e bielorussos.
Colocar o desporto ao serviço da humanidade e de modo a promover a paz é de saudar na mobilização da comunidade desportiva no apoio a países devastados pela guerra, conflitos étnicos ou catástrofes naturais, aproveitando o impacto mediático de um fenómeno global como é o desporto na provisão de recursos essenciais à reconstrução e desenvolvimento destes territórios.
O desporto como uma via de combate à pobreza e à promoção do desenvolvimento tem a sua ação neste domínio muito longe de se esgotar na gestão mediática dos seus intervenientes e dos eventos pontuais que se realizam com propósitos solidários .Os eventos e manifestações desportivas de solidariedade, às quais a esfera política se “associa”, pode confundir emergências com prioridades. Foi assim no Sudão, no Ruanda, em Santa Cruz, no Zimbabué, ou no Haiti ou mais recentemente com a crise na Síria.
São acontecimentos que ocorrem em complemento de um longo processo de degradação de hábitos de vida elementares em estados frágeis e regiões desfavorecidas do planeta, onde o desporto se devia assumir, entre outros, como um instrumento socioeducativo estruturante da vida em comunidade, inserido em planos educativos e de saúde pública destas populações.
Desde a década de 70 que as Nações Unidas se empenham em integrar o desporto na cena política internacional. Numa primeira fase, consagrando a educação física e o desporto como um direito para todos os cidadãos e condenando discriminações a esse direito. Recentemente, no quadro de ação dos Objetivos do Milénio, tem vindo a ser desenhada no seio da ONU uma estratégia alargada de integração do desporto nas políticas de desenvolvimento, coordenando a intervenção de vários dos seus organismos.
Na Europa, o Parlamento Europeu e a Comissão têm tomado iniciativas importantes, a par do Conselho da Europa.
O reforço da cooperação com as autoridades desportivas internacionais, as organizações empresariais, o movimento olímpico, as diversas redes e plataformas não-governamentais para o desporto e o desenvolvimento e as organizações políticas regionais vêm produzindo intervenções relevantes em projetos locais e ações humanitárias, nomeadamente em África, consolidando instrumentos de trabalho para monitorizar os progressos alcançados através de programas desportivos em áreas como a erradicação da fome e da pobreza, a igualdade de género, ou o combate a doenças infectocontagiosas.
Os desafios que se colocam à comunidade internacional no centro das suas opções político-desportivas são diversos.
A ONU ao reconhecer ao Comité Olímpico Internacional o estatuto de observador da Assembleia Geral das Nações Unidas enfatizou o papel do movimento desportivo internacional a envolver-se e a utilizar o desporto como meio de mudança e de desenvolvimento social ao serviço da humanidade.
Em Portugal desde 2016 que o COP tem desenvolvido um programa de apoio que atingiu perto de um milhar de refugiados e deslocados em busca de asilo, através do apetrechamento dos centros de apoio aos refugiados em material desportivo de diversas modalidades, no acompanhamento à integração no tecido associativo daqueles com capacidades desportivas para a vertente competitiva e nas comunidades locais dispersas pelo território nacional.
Nestes locais uma bola, uma bicicleta, uns sapatos desportivos, o contacto humano que o desporto proporciona são experiências de um valor social inestimável. A alegria vivenciada contrasta com a amargura da chegada a um novo e estranho destino, rompendo com as barreiras linguísticas, étnicas e culturais na comunhão em torno de uma bola ou de uma outra atividade desportiva.
Apesar das reconhecidas dificuldades face ao contexto internacional que enfrentamos é preciso não desistir. E continuar a utilizar o desporto como uma ferramenta de promoção da paz.
José Manuel Constantino
Presidente do Comité Olímpico de Portugal