Hoje apetece-me falar de futebol… – Opinião – Pedro Miguel Jorge

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Texto de Opinião

Pedro Miguel Jorge

Hoje apetece-me falar de futebol…

Numa altura em que se aproxima o Mundial de Futebol Qatar 22 que, não tendo ainda começado, já é de memória infame – justamente, eu diria, dados os atropelos cívicos e laborais que levaram a milhares de mortos para que o “mundo do futebol” possa levar a cabo mais uma jornada de promoção do seu desporto que é sobretudo um negócio de biliões – venho propor-lhe desta vez uma reflexão sobre o papel que este desporto tem no nosso país. 

Não, não vou falar de 4-4-2 ou de jogadores em grande forma e outros nem por isso, nem de outros assuntos sobre os quais nada percebo e que deixo para os agentes desse mundo – os jogadores, corpo técnico e directivo, (e nada mais, pois comentadores temos demasiados). Somos todos “treinadores de sofá”, mas não pretendo gastar muito tempo com isso…

Gostava de me focar no desporto em si e em como conseguiu, ao longo dos pouco mais de 100 anos que leva de existência em Portugal, tornar-se no “desporto nacional”, aquele que tem mais praticantes, o que maior associativismo implica, e como se tornou o epicentro social de algumas das maiores paixões e ódios colectivos, capaz de provocar verdadeiros momentos de quase histeria generalizada, como quando o nosso país venceu o Europeu de 2016 em França, mas também as piores manifestações de violência e discurso público agressivo e de muito baixo nível que se vêem na nossa sociedade.

Apesar de ter havido alturas em que os nossos três principais clubes mostraram à Europa que este desporto já estava a adquirir alguma relevância internacional – Benfica e Sporting nas décadas de 50 a 70 do ultimo século, e F.C. Porto a partir dos anos 80, conquistando títulos europeus – é sobretudo a Selecção Nacional que, a partir de meados dos anos 90, começa a participar de forma regular nestas competições (as brilhantes prestações do Mundial de Futebol em Inglaterra em 1966 e do Europeu de França em 1984 são as excepções em alturas em que o nosso país não alcançava estes torneios) o que coincide com a massificação deste desporto a nível mundial, muito por causa do desenvolvimento tecnológico que o veio a tornar sobretudo um desporto televisionado. E é assim que este desporto, que já era bastante popular a nível interno, se catapulta também para os grandes palcos internacionais: quase de repente, somos um pequeno país que poucos conhecem com um futebol que “dá cartas” e que se impõe aos melhores, estando no topo dos “rankings” internacionais, com jogadores capazes de levar o nome do país a todo o mundo.

É difícil resistir-lhe. Afinal, habituamo-nos a ver a equipa nacional ganhar regularmente, a encher-nos de prestígio um pouco por todo o lado, com jogadores que passam a ser porta-estandartes de um país de que não se conhece o nome do Presidente ou de outras figuras relevantes, mas que se identifica imediatamente através do seu principal jogador de futebol.

A face desagradável desta realidade não pode ser esquecida, contudo. Através da televisão o futebol chega a mais gente do que nunca. Exacerbam-se paixões e ódios. Rivalidades que eram apenas isso escalam para dimensões inacreditáveis naquilo que encerram de violência e raiva pelo outro. Confunde-se regularmente “adversário” com “inimigo”. Ao mesmo tempo, o futebol deixa de ser um desporto “visto” para passar a ser um desporto “falado” – ou melhor, discutido, muitas vezes no mau sentido. Os protagonistas deixam de ser os jogadores e técnicos para passarem a ser os comentadores televisivos, cada um pior que o outro. Não deverá haver muitos países com três jornais diários ditos “desportivos”, mas que praticamente só noticiam futebol, nem rubricas diárias nos principais serviços noticiosos em horário nobre em que, após a introdução “Agora o desporto…” se fala da preparação do próximo jogo de futebol dos três ditos “grandes” como uma notícia relevante.

Num círculo mais alargado, percebemos que o futebol se torna também numa das principais áreas fonte de corrupção, em que o dinheiro sujo circula livremente e os impostos que deveriam ser pagos não o são, levando a situações verdadeiramente difíceis de aceitar, em que por vezes a crise social (como a actual) se intensifica, mas as contas do futebol continuam a ser feitas na casa dos milhões. Passamos ainda a um estado em que os outros desportos são muitas vezes “vampirizados” pelo futebol, não sobrando nada para a actividade de clubes que apostam noutras modalidades, ou mesmo prejudicando a formação, quer do próprio futebol, quer de outros desportos.

Enfim, não quero traçar apenas um quadro negro da realidade. Mas é um facto que vamos dentro de dias iniciar uma grande competição internacional com um dos mais baixos níveis de identificação com a Seleção Nacional das últimas décadas, muito por causa de problemas como os referidos, com o seleccionador suspeito de fuga aos impostos com a conivência do próprio Presidente da Federação, tudo isto numa competição que deveria ter sido pura e simplesmente boicotada por todos os agentes do mundo do futebol.

Não deixo de gostar deste desporto, e prefiro terminar pensando naquilo que este desporto ainda encerra de positivo e de genuína paixão pela capacidade que tem de unir as pessoas e os povos, encerrando uma dimensão humana de partilha e identificação, mesmo na rivalidade, que poucas áreas da vida humana conseguem. E para tal, pedia-lhe a paciência para ler uma história verídica que se passou comigo há cerca de 30 anos.

No mundo do futebol, esta era uma época em que o nosso “embaixador” era Paulo Futre, com Figo e a sua geração recentes campeões do mundo de juniores em Lisboa, mas ainda a uns anos de se tornar a principal figura portuguesa deste desporto. Cristiano Ronaldo tinha apenas 6 ou 7 anos.

Tive então a felicidade de obter uma bolsa Erasmus para estudar na República da Irlanda durante um ano lectivo. Nas férias da Páscoa resolvi conhecer o país, pois era uma oportunidade única de que dispunha. Durante duas semanas visitei várias partes da ilha, incluindo a Irlanda do Norte, com dois amigos alemães que entretanto conhecera. Nestas andanças, fomos parados na estrada um certo dia para uma Operação Stop, no norte do país. Não estávamos à espera, mas imediatamente puxámos dos nossos passaportes, esperando que o entendimento fosse fácil, pois os diferentes sotaques nem sempre o permitiam. O agente que nos abordou, pessoa já mais velha, apercebeu-se pela matrícula do carro (alemã) que éramos estrangeiros, pelo que pediu apenas para verificar os passaportes. Ordenadamente, começou pelos dois alemães, que ocupavam os lugares da frente naquela altura da viagem. Não perguntou absolutamente nada. Quando baixa a cabeça para verificar quem estava no banco de trás e vê que o passaporte era português, fez-me apenas esta pergunta: “O que é feito do Eusébio?” 

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