Texto de Opinião
Pedro Miguel Jorge
JÁ NINGUÉM ENFORCA CÃES…
Reabriu há umas semanas, rejuvenescida e de “cara lavada”, a estrada conhecida no concelho como “Enforca Cães”, voltando a permitir uma jornada mais curta e mais cénica entre a Praia de Quiaios e a Murtinheira, e a Figueira. Motivou algum regozijo um pouco pela cidade e pelo concelho, pois o passeio é bonito e faz compensar alguma demora que possa ser motivada pela acumulação de visitantes, curiosos que estavam por ver a recuperação de uma via que faz parte da memória colectiva da Figueira.
Entre conversas de café e reflexões mais elaboradas, bem como comentários que variaram
entre o “Já viste como está o Enforca Cães?” e a satisfação por ter reaberto uma estrada que hoje em dia permite mais mobilidade saudável, uma questão surgiu, até em alguma
comunicação social, sobre o nome da estrada nos dias que hoje correm – i.e., se deveria manter-se ou se deveria ser também alvo de “requalificação”. Venho com este artigo dar a minha pequena contribuição para esta questão, não pretendendo mais do que “pensar a cidade”, à semelhança do que fiz em ocasião anterior.
E começo logo por afirmar que seria bom que a designação de “Enforca Cães” fosse a pouco e pouco desaparecendo da toponímia informal que todas as terras têm em alguns dos seus locais, por ser desajustada em relação aos dias de hoje, mas sobretudo, cara leitora e caro leitor, por se poder facilmente, arrisco dizer, encontrar um nome mais digno para uma via que se pretende que seja uma passagem que celebra a vida e não a morte.
Vamos por partes: não venho aqui com o intuito de “cancelar” ninguém, promovendo uma qualquer atitude de perseguição ou de “polícia da língua”. Gostaria de chamar a atenção para dois ou três pontos, dando exemplos, de como por vezes estas questões resultam apenas da inércia de não querer mudar ou, perfeitamente natural também, não achar esta questão muito importante. Sem dúvida que esta estrada continuará a ser conhecida da forma que é hoje por muitas pessoas durante mais tempo. Mas também desejo lembrar como este é um tipo de exercício em que muitas vezes as forças vivas da cidade e os seus habitantes gostam de se envolver, embelezando-a, sentindo-a e agindo de acordo com essa envolvência, tornando-a mais nossa. Não são só canteiros, passeios e ruas que podem ser mantidos bonitos e limpos – também o património imaterial, desde logo os nomes dos locais, a maneira como chamamos a nossa terra, pode ser melhorado e embelezado, sempre com o intuito de com ela melhor nos identificarmos e a ela pertencer.
Sim, há de facto locais que têm nomes infelizes, e são até motivo de brincadeira e risota para todos nós, um povo com muito sentido de humor. Mas se decidirmos investigar um pouco, veremos que a alteração de nomes de locais, até de países, não é um processo tão estranho como poderia parecer à primeira vista. Desde a toponímia alterada em muitas cidades dos PALOP, totalmente em choque com a nova realidade que estes países enfrentaram com a sua independência nos anos 70 do século passado, até aos nomes dos próprios países, mais adaptados às suas culturas e línguas locais (a Rodésia passou a ser o Zimbabwe, por exemplo, ou mesmo a muito recente insistência dos Países Baixos e da Chéquia em alterarem o seu nome de acordo com as suas próprias origens), este continua a ser um processo relativamente comum e que gera por vezes, naturalmente, até alguma animosidade. Muitas pessoas mais velhas ainda hoje acham que a Ponte 25 de Abril não deveria ter sido renomeada, mas foi isso que aconteceu, pois era o mais natural que acontecesse e reflectia melhor uma nova realidade, mais democrática e mais de acordo com os novos tempos de então.
Mas vamos a exemplos locais. Gostaria de começar por sugerir um primeiro, excelentemente descrito no recente artigo de opinião “A Terra da Bosta!” de Rui Duque, nesta coluna da Figueira TV. Embora de um âmbito temático diferente do que preside a esta crónica, não deixa de ser um claro exemplo de como nomes que reflectem realidades desagradáveis, perfeitamente desajustadas dos tempos actuais, e até pejorativas, podem pura e simplesmente ficar no caixote do lixo da história. Esta é uma expressão que pode perfeitamente cair no esquecimento, pois não serve para descrever toda uma cultura regional que, como refere Rui Duque, é feita de “(…) gente grata e orgulhosa do sacrifício e da batalha guerreira dos seus antecessores (…)”.
Mas um exemplo muito esclarecedor é o que se refere a um dos casos mais conhecidos na
Figueira, que sobretudo as pessoas acima dos 30, 35 anos bem conhecem: o antigo nome da Praia do Forte. Refere-se a tempos que felizmente já lá vão, em que ainda existiam muitos problemas de higiene e saneamento na cidade. Por ser francamente desagradável e desajustado (embora motivo ainda de alguma brincadeira em ambientes mais descontraídos), deixou de ser usado de uma forma generalizada, sendo largamente ignorado pelas gerações mais jovens, mais interessada em usufruir de uma praia bastante central e bem servida de acessibilidades. Parece-me que este é um excelente exemplo de como, de facto, os tempos trazem outras sensibilidades que podemos acolher de forma natural, deixando o que não serve e não está ajustado à nossa vivência actual ficar para trás sem remorsos de qualquer espécie.
As recompensas são maiores do que simplesmente ficar agarrado a ideias que no presente não fazem qualquer sentido.
Segundo julgo saber, a designação de “Enforca Cães” teria a ver com uma necessidade premente de lidar com a doença destes animais. Sim, mas mais uma vez as condições de hoje em dia são felizmente muito melhores, desde a nossa relação com os animais que se julga estarem há mais tempo junto de nós no processo de domesticação, muito mais digna e próxima do que em outras eras, até às condições sanitárias e evolução do conhecimento da medicina veterinária, que nos permite tratá-los com muito mais dignidade até à sua morte.
Algo simples como uma auscultação ao concelho, via redes sociais ou qualquer outra plataforma generalizada, poderá, cara leitora e caro leitor, mostrar como a nossa imaginação e capacidade criadora será capaz de divulgar uma nova designação desta estrada icónica que faça a actual ficar progressivamente arrumada na memória de tempos felizmente já passados.