Texto de Opinião
Pe. Nuno Filipe Fileno
ONDE MORA, EM NÓS, A CASA?
É de Mia Couto uma das frases mais inspiradoras para mim, neste momento: “o importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”. Sou padre católico, ao serviço da diocese de Coimbra. Depois de uma rica experiência de cinco anos como pároco no norte do concelho da Figueira da Foz, fui enviado, em setembro passado, numa missão de estudos na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. O objeto de estudo é a Teologia Fundamental, isto é, o aprofundamento das razões de crer a partir da filosofia de da história, para um diálogo mais profícuo com o mundo atual. Um curso que coloca sempre a fé em questão, porque quem acredita questiona não só a existência de Deus e a sua manifestação, mas acima de tudo questiona-se constantemente a si próprio. Neste contexto recebi este desafio de partilhar pontualmente nesta revista alguns textos sobre aquilo que me parece mais pertinente na atualidade. A minha resposta positiva surge neste esforço de me questionar enquanto padre e estudante sobre mim mesmo e a fé que professo nesta Igreja que, com um grande tesouro para oferecer ao mundo, conhece agora, em Portugal, um período de densas sombras.
Embora fosse mais agradável refletir sobre outros temas mais periféricos à minha missão, ouso colocar neste espaço algumas considerações sobre este drama que são os abusos praticados a pessoas vulneráveis. Este não é obviamente um problema exclusivo da Igreja, mas não me surpreende a indignação de tantos ao verem associada a prática do abuso a uma figura que aponte para o sagrado, naquela que é para muitos a instituição depositária valores humanistas inalienáveis.
Creio que devemos ir além do imediato da questão. Cada vítima é evidentemente um sinal de fracasso da missão da Igreja e causa de vergonha, mas é ao mesmo tempo um novo campo aberto a uma ação que deve ser mais do que reparadora mas acima de tudo reintegradora da pessoa, porque na lógica evangélica importa sempre em primeiro lugar o “próximo”. Em boa hora foram criadas em cada diocese comissões de acompanhamento destes casos, que mais do que enumerar casos devem ser lugares de escuta. O pedido de desculpa da nossa parte, enquanto Igreja, é inevitável, mas não deixa de ser apenas o mínimo que podemos fazer. Para além de acompanhar quem foi violentado na sua dignidade é preciso colocar a questão, com muita clareza e humildade, sobre a raíz deste problema. Aqui este deixa de ser um desafio exclusivo para a Igreja, mas também para a sociedade em geral, constituída por tantas instituições, desde a família ao trabalho. De onde surge o abuso como possibilidade? Claramente surge sempre a partir de uma noção deturpada de poder. E a verdade é que todos nós, adultos, somos investidos de algum poder sobre outro(s). Não precisamos sair de casa para o comprovar. A questão que devemos colocar é: que sentido dou ao poder que tenho sobre os outros? Num tempo dominado pela imagem e pelo hedonismo não nos devemos surpreender que o poder seja tantas vezes encarcerado numa lógica autoreferencialista, segundo a qual, os meus inferiores estão sempre subjugados a mim. É difícil converter o poder em serviço porque isso exige um olhar para lá do imediato e da funcionalidade do sistema, mas a única solução para este problema tem tudo a ver com esta mudança ao nível pessoal e institucional. Sem cairmos nos ilusórios extremos ideológicos de sociedades igualitárias, sem classes, devemos a partir daqui desenhar um outro modo de compartilharmos a vida em sociedade, no qual cada um, independentemente da sua condição é um dom a proteger. A tal fraternidade, que o Papa Francisco quis propor como desfio para este nosso tempo. Já percebemos que não basta ter comissões de proteção a funcionar, é preciso estarmos todos convencidos de que não podemos continuar a proceder como antes. Na Igreja e fora dela, não podemos continuar a pressupor que uma formação livre e adequada é apenas feita racionalmente, nos bancos da escola ou na biblioteca. Os ensinamentos não são suficientes quando o afeto não é cuidado para ser equilibrado. Esta hora exige de todos um reconhecimento humilde de que é importante voltar a re-ligar a razão ao afeto, porque podemos hoje ser os maiores depósitos de informação mas seremos inábeis com ela se esquecermos este campo sagrado que nos habita que é a afetividade. Somos hoje uma sociedade altamente qualificada mas cada vez mais carente, em que o indivíduo é valorizado ou não pelo seu nome numa rede social ou pelo número de likes que alcança. A realidade mistura-se com o virtual e a páginas tantas já não sabemos a que lugar pertencemos. Neste contexto é fácil adiar o trabalho no campo afetivo e deixar a vida correr, mas a fatura deste adiamento paga-se muito cara, todos, socialmente, a pagamos.
Parafraseando Mia Couto ouso dizer que a verdadeira casa de cada um de nós é este campo profundíssimo do nosso afeto, que, unido à razão torna-nos pessoas, dotadas de capacidade de relação em vista a uma edificação social. Sem dúvida que o importante é onde mora em nós esta casa. Este é um contínuo convite a um olhar profundo de nós mesmos a partir do que somos, sem subterfúgios ou tabus. Um desafio para assumir na Igreja, em família, na escola ou no trabalho. Que importância damos ao acompanhamento na educação familiar, escolar ou eclesial?
Acredito que cada crise é oportunidade para recomeçar renovadamente.
Olho para esta crise na Igreja e na sociedade como um apelo a uma mudança.
Estaremos todos dispostos a fazer parte dela?