Qatar, de quem é a culpa? – Opinião – Ricardo Costa Santos

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Texto de Opinião

Ricardo Costa Santos

Qatar, de quem é a culpa?

As polémicas em volta do Mundial de Futebol e do país que o organiza têm sido muito faladas ao longo das últimas semanas. No entanto, as atuais controvérsias não são mais que os ecos daquilo que observadores mais atentos têm destacado desde a possivelmente comprada[1] escolha do Qatar como país organizador em 2010[2]. Cada um dos problemas levantados é, ele próprio, merecedor de uma análise e reflexão profundas: desde a forma como as contratações de migrantes para construção dos estádios foram presumivelmente patrocinadas pelo (presumivelmente banido) sistema Kafala[3], passando pelas quantias gastas com este Mundial[4] e a forma como os mais altos representantes do país encaram as comunidades LGBTQAI+[5]. Embora considere todos esses temas de extrema importância, não me irei focar neles para dar destaque a como nós ocidentais tão facilmente fazemos vista grossa a estes problemas.

As primeiras declarações para as quais chamo a atenção são as do nosso Presidente da República quando justificou a sua ida a Qatar: O que a Seleção diria e, sobretudo, o que é que os portugueses diriam? Eu fiz o que a esmagadora maioria dos portugueses queria que eu fizesse. Admitindo que esta afirmação representa a realidade e não mero wishful thinking, a ideia fundamental é que os direitos humanos são muito importantes MAS mais importante ainda é estar no Mundial. Mais, estar no Mundial é tão importante que as 3 principais figuras do estado Português têm que estar presentes em jogos da fase de grupos de modo a, sob o subterfúgio do desporto, contribuir para a legitimação de personalidades e regimes incompatíveis com os valores que proclamam. Repare que isto não é novo: há não muitos anos, o próprio presidente da FIFA sinalizava ao mundo que, quando não mandavam prender ou matar opositores e dissedentes políticos, tanto o líder da Arábia Saudita como o da Federação Russa eram, no fundo, gajos normais que gostam de bola.

O presidente da FIFA Giani Infantino entre Vladimir Putin da Federação Russa  e Mohammed bin Salman da Arábia Saudita (fonte: Getty Images)

A segunda declaração que considero particularmente interessante vem de Hugo Lloris, guarda-redes da seleção francesa: Quando recebemos visitantes estrangeiros em França também queremos que respeitem as nossas regras e a nossa cultura. Vou fazer o mesmo no Qatar. Esta declaração pode parecer sensata em vácuo mas é particularmente reveladora do estado de espírito do seu autor. Estas declarações surgem para indicar que Hugo Lloris não iria envergar a braçadeira OneLove (uma braçadeira branca com um coração arco-íris, entretanto banida pela FIFA[6], que não é mais que um adereço simbólico de apoio ao respeito pela sexualidade de cada um) que até já tinha sido envergada por colegas de seleção antes. Ninguém sensato iria pedir a Hugo Lloris ou qualquer outro capitão de equipa para fazer comunicados, recusar-se a jogar ou tomar uma posição forte sobre o tema. No entanto, esperar-se-ia que, dentro do limitado poder que jogadores de futebol têm, usar o maior palco do mundo para, de forma simbólica e inócua, manifestar apoio aos valores que professa subscrever seria o mínimo. A não ser, como suspeito, que na verdade não acredite realmente no direito a não ser perseguido por amar quem se quer, mas saiba que dizê-lo em voz alta não cairá bem.

Raphael Varane envergando a Braçadeira OneLove enquanto capitão da seleção francesa na Liga das Nações. A mesma braçadeira que Hugo Lloris afirmou não ir usar e que a FIFA proibiu de ser usada no Qatar (fonte: The Athletic)

O futebol, e este evento em particular, enquanto desporto tem a capacidade maravilhosa de nos fazer deixar passar os problemas e controvérsias para celebrar golos e sonhar com o título mundial.  Na verdade, refletir sobre este mundial até dá vontade de citar o lendário Martin Luther King: Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo do negro no seu caminho para a liberdade não é o Conselheiro do Cidadão Branco ou o Ku Klux Klanner, mas sim o branco moderado que prefere ‘ordem’ e uma paz negativa que assenta na ausência de tensão a uma paz positiva que reflete a presença de justiça. Na verdade, a raíz do problema somos nós, o público. Fomos nós que decidimos fazer vista grossa a todo o processo de seleção do país organizador. Fomos nós que deixámos de discutir os assuntos verdadeiramente importantes assim que a bola começou a rolar e seremos também nós que prosseguiremos normalmente com as nossas vidas e não dedicaremos um segundo mais aos problemas de direitos humanos no Qatar assim que a Final for jogada e um campeão coroado. Vai ser para nós ficarmos entretidos a aplaudir 22 tipos atrás de uma bola que regimes autocráticos e com muito dinheiro continuarão a investir nestes eventos e “limpar a sua imagem”. Será pelo mesmo motivo que a FIFA e os nossos políticos e dirigentes não levantarão ondas e até dirão que não devemos criticar porque as nossas sociedades não são perfeitas e têm problemas. Se nos portarmos bem, no fim de tudo até podemos ganhar um concurso para a organização de um Mundial no futuro.

[1] https://www.theguardian.com/football/2014/nov/13/farce-fifa-michael-garcia-erroneous-ethics-report

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/2022_FIFA_World_Cup_controversies

[3] https://www.vox.com/world/2022/11/26/23468456/qatar-migrant-labor-world-cup-kafala

[4] https://www.dw.com/en/qatar-world-cup-will-be-the-most-expensive-of-all-time/a-63681083

[5] https://news.sky.com/story/being-gay-is-damage-in-the-mind-qatar-world-cup-ambassador-says-12741596

[6] https://www.englandfootball.com/articles/2022/Nov/21/statement-one-love-armband-world-cup-2022-20222111

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