Texto de Opinião
Pe. Nuno Filipe Fileno
Tutto chiede salvezza
O título original da série da Netflix (Tudo pede salvação – na versão portuguesa: todos queremos ser salvos) surpreendeu-me quando, há dias procurava relaxar um pouco e fazia pesquisa na lista de sugestões dessa conceituada plataforma streaming. Vi o trailer, li o argumento. Na verdade já me tinham falado que valia a pena ver. Desde o primeiro episódio senti que não estava diante de mais uma série pop sobre uma temática sensível, mas estava verdadeiramente diante de uma obra de arte, que pedia mais contemplação que consumo. Prometo não ser spoiler neste texto.
Francesco Bruni inspirou-se no romance de Daniele Mencarelli para realizar a série que recebeu o mesmo nome do livro.
Daniele é um jovem que entra numa clínica psiquiátrica para realizar um tratamento, depois de um episódio psicótico que o levou à agressão física dos próprios pais. O consumo excessivo de droga conduziu-o a um lugar que o obrigará a um verdadeiro renascimento, que o levará a ver a vida e o mundo de um modo novo – uma verdadeira conversão. Aquele ambiente terapêutico transforma-se de repente num laboratório de afetos que o conduzirá a uma reconciliação com o seu passado e a sua condição. De repente descobre que o denominador comum dos amigos da mesma ala psiquiátrica não é tanto a doença mas a dor pela incompreensão de um mundo que apregoa liberdades mas que é cada vez mais incapaz de ser coerente na prática da inclusão e do cuidado dos frágeis, que ainda se vêem marginalizados. Daniele vai assim descobrindo, naquela semana de tratamento, que está diante de pessoas que, apesar do desequilíbrio, são autênticas, genuinamente humanas, e, paradoxalmente aquele lugar de “loucos” vai-se tornando mais suportável que o mundo que o tinha conduzido à adição. Os próprios médicos e enfermeiros recebem na narrativa um belíssimo traço humano, porque também eles são apresentados a partir da sua fragilidade, que os coloca, do ponto de vista afetivo, ao mesmo nível daqueles de quem são chamados a cuidar. A distinção entre doentes e sãos é meramente formal, porque afinal, todos apresentam desequilíbrios.
Os episódios são divididos pelos dias da semana e eu diria que são um apelo a ver um por dia, para conseguir contemplar toda a narrativa e integrar as interrogações que sugere. A última palavra do título é decididamente a primeira da série, porque é a chave para a compreensão do argumento.
Até que ponto o mundo que construímos é capaz de ser casa para todos? Que lugar damos à escuta e ao afeto na edificação da família e demais instituições? Qual o preço a pagar pela vida marcada cada vez mais pelo virtual? Que estereótipos mantemos na sociedade, apesar de sermos todos defensores da tolerância e da liberdade?
Se não queremos uma sociedade desequilibrada, devemos priorizar o que mais nos edifica – as relações e os afetos, porque, afinal, como escrevia Etty Hillesum: “todos somos parte de um grande processo de crescimento”, onde tudo está completo para ser gerado. Sábado, o sétimo dia da semana, segundo a tradição bíblica associado ao descanso e ao louvor a Deus, está marcado pelo alta médica de Daniele mas também pelo funeral de um companheiro. No decorrer da Celebração o jovem proclama um belo texto, num profético anúncio de esperança diante da complexidade da vida e da morte:
Do alto, do topo do universo,
atravessando o crânio e descendo até aos calcanhares,
à velocidade da luz e mais além
Através de todos os átomos da matéria
Tudo clama por salvação.
Era esta a palavra que procurava: salvação.
Para os vivos e para os mortos: salvação
Para o Mario, Gianluca, Giorgio, Alessandro e Madonnina
Para os doidos de todos os tempos
Engolidos pelos manicómios da História
Salvação.
Estamos a celebrar o Natal. Fazemo-lo de modos diversos, consonante a cultura ou a fé. No seio da família procuramos ainda manifestar por meio de gestos que acreditamos no que nos une verdadeiramente. E sim, todos precisamos de salvação, daquela que nos vem de alguém que nos acolhe e ama como somos até daquela que é capaz de nos reerguer diante da morte e do sofrimento. Precisamos porque todos somos frágeis e é na fragilidade que somos capacitados para o amor.
Numa sociedade que exige perfeição basta-nos a ‘fraqueza’ de sermos humanos, para que ninguém se perca e todos se salvem. O Natal nasceu para isso, e mais uma vez somos felizes por celebrá-lo. Afinal, a maior loucura é nunca desistir.
Feliz Natal.
Nuno Filipe Fileno